CRISE EMOCIONAL E ESPIRITUAL
É vital entendermos que, embora a doença em si seja uma questão externa que precisa de tratamento, nossas lutas com as doenças mentais e a forma como elas afetam a nossa recuperação são, de fato, “questões internas”. Precisamos fazer essa distinção para assegurar que não deixemos de procurar ajuda adicional, seja por causa do estigma presente em algumas salas de apoio, ou pela confusão sobre a relação entre doença mental e recuperação.
Às vezes, o que experimentamos é uma consequência de uma condição física: quando estamos nos desintoxicando, por exemplo, as coisas podem ficar muito intensas. A maioria de nós, no início da recuperação, descobre que nos falta um “botão de volume” para as emoções: nosso humor oscila descontroladamente, nossas vidas parecem muito dramáticas e podemos ser assustadoramente impulsivos.
As coisas se acalmam à medida que nos acostumamos com as nossas vidas e à medida que nossos corpos se adaptam a estarem limpos.
Às vezes, parecemos insanos, mas precisamos de mais tempo. A “desintoxicação emocional” pode levar muito mais tempo do que a desintoxicação física, e há dias em que isso se torna realmente difícil.
Podemos não estar convencidos de que irá passar, mas a confiança no programa pode nos dar esperança.
Quando uma mudança súbita no nosso comportamento é notada por nós ou pelas pessoas que nos querem bem, vale a pena considerar se pode haver forças físicas em ação. O que realmente desejamos é uma cura para nossos sentimentos. Mas o que está acontecendo no nosso interior muitas vezes é o processo que vai nos trazer à luz. Às vezes, é apenas mau tempo em nossas cabeças e simplesmente precisamos esperar que passe.
Esse tipo de crise pode ser assustador em sua intensidade, e às vezes, parece que só podemos distingui-la de outros tipos de dificuldades em retrospecto. Mesmo sendo intensa, ela é temporária, e aliviada pela superação ou pela vontade obstinada de persistir até a crise passar. “Passamos por uma experiência espiritual vital e somos modificados”, diz o Texto Básico. Podemos ser devolvidos à sanidade e vivermos vidas felizes e produtivas.
Podemos precisar de novas ferramentas para continuar a construir a nossa casa. Isso não significa que estamos abandonando o trabalho que fizemos ou traindo nosso compromisso se, às vezes, precisarmos procurá-las em outro lugar.
Alguns de nossos membros mais experientes compartilham que os momentos de mais profunda insanidade ocorrem quando nosso interior não corresponde ao nosso exterior; quando estamos fazendo coisas que vão contra nossas crenças, quando estamos, de um jeito ou de outro, vivendo uma mentira ou quando estamos em negação do que realmente está acontecendo ao nosso redor. A desconexão entre o que queremos, o que acreditamos e o que estamos fazendo é suficiente para fazer qualquer um se sentir insano e pode ser uma força poderosa para a recaída. Quando dizemos a alguém de confiança o que realmente está acontecendo, podemos começar a sentir um pouco de esperança novamente.
A PRÁTICA DA RENDIÇÃO POR TODA A VIDA
Nossa compreensão de rendição pode mudar ao longo do tempo, mas nossa necessidade dela não. No começo, a rendição pode ser somente uma questão de não usar drogas. Com o passar do tempo, começamos a ver outras formas de manifestação da rendição em nossas vidas. Tornamo-nos dispostos a entregar outros comportamentos, às vezes, um por um. Passamos a entender que usar qualquer substância ou comportamento é apenas um sintoma de nosso problema, que é de natureza espiritual.
Gradualmente, começamos a abrir mão das coisas que nos levam a agir: negação, raiva, ressentimento, necessidade de ter razão, sentimentos de superioridade ou inferioridade, vergonha, remorso e medo.
À medida que nossa compreensão do Primeiro Passo aumenta, rendemo-nos mais profundamente. Nossa confiança cresce e tornamo-nos um pouco mais dispostos a abrir mão desses padrões de pensamento e sentimento. Podemos perceber mais áreas de nossas vidas em que ainda nos apegamos à ilusão do controle. Raramente a rendição parece atrativa no começo, mas leva cada vez menos tempo para percebermos quando e como estamos agindo de maneira ineficaz. No início, só conseguimos abrir mão quando estávamos completamente derrotados, mas essa tolerância ao sofrimento diminui conforme nos recuperamos.
À medida que adquirimos mais experiência com a esperança e a melhora que surgem através da rendição, podemos reconhecê-la como uma maneira de nos reconectar com a realidade. A transição do pensamento de que nos rendemos à nossa doença para a percepção de que podemos nos render à nossa recuperação é, por si só, um despertar espiritual.
Mudar nossa percepção é como enxergar o mundo com novos olhos. A rendição é uma mudança de perspectiva. A honestidade pode transformar nossa visão: ela nos abre para a verdade.
Nossa fé em um Poder Superior cresce através de nossa experiência, oferecendo a oportunidade de vermos nossas vidas por uma perspectiva diferente. À medida que ganhamos experiência, não nos sentimos mais tão vulneráveis por agir de acordo com nossas crenças. Começamos a confiar que o resultado de abrir mão não será uma calamidade. O resultado de uma série de despertares espirituais é uma fé sólida.
Entretanto, o medo é um sentimento natural. A questão é como lidamos com ele. Os Passos Três e Onze nos permitem convidar um Poder Superior amoroso a participar de nossas decisões, e o Passo Dez nos ajuda a examinar a nós mesmos enquanto seguimos em frente. Frequentemente, somos os últimos a reconhecer nosso próprio crescimento. Quando vemos outros membros se recuperando e suas vidas melhorando, somos lembrados de que o mesmo está acontecendo conosco.
À medida que nossa consciência se aprofunda, continuamos a descobrir áreas de nossas vidas que precisam de trabalho. À medida que mudamos, ajustamo-nos. E, enquanto nos ajustamos, nosso equilíbrio se altera e mudamos um pouco mais. A sensação de que sabemos tudo é frequentemente seguida pela percepção de que não sabemos nada. Esse sentimento de impotência pode ser valioso, pois nos permite aprender mais sobre rendição.
Uma das dádivas da recuperação é o retorno de nosso senso de humor. Ele vai e vem, claro, mas quando o perdemos, é um ótimo sinal de que podemos nos beneficiar de uma mudança de perspectiva.
O humor que encontramos nas histórias uns dos outros é uma maneira de sabermos que estamos no lugar certo. O que nos faz rir tende a mudar à medida que crescemos. O sofrimento dos outros já não nos distrai tanto e somos mais capazes de ver o lado mais leve das situações difíceis. Qual seria a sua, hoje?
(Baseado no livro “Viver Limpo: A Jornada Continua”, NA)
Autor do artigo: Alcinir Pessanha
Alcinir Pessanha é Terapeuta e Conselheiro dependência química.
Site: https://terapeutaconecta.com.br/